segunda-feira, novembro 26, 2007

Um dia na Agonia

Ele trabalhava na Rua Luiz Agonia em um mercado antigo, que conseguiu sobreviver aos prédios e condomínios luxuosos da região. Era chaveiro e gostava de dizer poeticamente que “sua profissão abria portas”.

Era o único que tinha uma banquinha daquela rua que não vendia animais. Os seus vizinhos de mercado viviam num comércio intenso: eram centenas e centenas de pássaros engaiolados, cachorros das mais variadas raças, galos, galinhas, pombos... todos ali guardados, esperando um dono.

O chaveiro há muito havia se acostumado com os seus barulhos. Os das chaves sendo esculpidas e o dos animais sempre latindo, piando, arrulhando, cacarejando...

Dois anos atrás ganhou de um cliente antigo um toca-fitas usado. Começou então a escutar a única fita que tinha: de valsas.

Chegava na banca às 8 da manhã e saía às 8 da noite. Não tinha filhos, nem esposa. O seu melhor amigo era o dono da lanchonete perto do mercado, onde fazia suas refeições.

Depois de algumas decepções, aprendeu a fechar as suas portas.

Não tinha muitos gastos e nem vícios. Mas tinha uma obsessão: não confiava em bancos nem andando na calçada. Achava que eles eram criados para empobrecer o trabalhador e não para ajudá-lo a poupar.

Guardava tudo que ganhava no tradicional “em baixo do colchão”. Toda semana reunia todo o dinheiro que ganhava e contava.

No dia em que eu o conheci, me contou: com a sua cópia, completo os 10 mil atendimentos. Fiquei perplexa.

- E você anota todos os clientes? – questionei

- Desde os meus 15 anos, quando comecei a fazer chaves e abrir portas. Poderia ter conseguido esse número antes, mas adoeci algumas vezes nesse tempo.

Não perguntei mais nada. Me despedi e agradeci as chaves. No outro dia soube o seu nome pelos jornais.

“Chaveiro surta e solta animais do mercado” – dizia a manchete.

Moradores da rua Luiz Agonia levaram um susto ontem. Centenas de animais invadiram suas casas e prédios depois que o chaveiro Luiz da Silva, 55 anos, resolveu soltar os animais engaiolados das barracas vizinhas as suas. Até cobras foram encontradas.


Depois do incidente, Luiz sumiu. E ninguém nunca mais teve notícias dele.

3 Comentários:

Às 11:51 PM , Blogger Me disse...

Que história bonita. Melancólica, né? Sempre tive uma queda por pessoas que soltam os animais. Eu mesma já fiz muito disso quando criança movida por um surto chamado angústia. Quem sabe não foi isso que o motivou. Mas pena que a gente cresce e a vida nos anestesia...

Coincidência ou não, estou relendo a história de um homônimo do abridor de portas, cuja criada, Vitória, também não confiava em bancos e guardava todo o dinheiro do seu ordenado em buracos feitos no quintal, como se ali pudesse brotar numa manhã de primavera um frondoso pé de dinheiro. :)

Um beijo, Naty. E escreve mais... :)

 
Às 4:19 PM , Blogger Thaís Salomão disse...

Oi, Natália, tudo bom?

Estava aqui na Internet procurando sobre algum chaveiro aqui no Recife. Sou estudante de Jornalismo e preciso fazer um perfil sobre um chaveiro urgentemente.
Li o teu texto e fiquei super interessada em saber mais sobre ele.
Será que teria como tu me falar como encontro ele?
Ou, pelo menos, onde tu encontrasse ele e tal?

Obrigada pela atenção =)

 
Às 3:44 PM , Blogger Natalia disse...

Oi Thais,
Na verdade o texto é uma "licença poética". Me inspirei depois que fiz uma visita ao chaveiro que ficaMercado da Madalena...
Espero q tenha te ajudado. Bjo

 

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