quinta-feira, novembro 13, 2008

O cheiro da liberdade

Era assim um viciado. Mas mantinha a sua condição de dependente em sigilo. Porque pior do que viver em função daquele vício era se imaginar julgado louco por todos aqueles que conhecia. Por isso, fazia questão de manter a aparência e de viver uma vida regrada e óbvia.

Há dois anos passou num concurso e adotou o ofício de funcionário público. Não se considerava nenhum galã de cinema, mas conseguia administrar bem os seus casos amorosos. Tinha 35 anos e ainda morava com os pais – uma questão de estratégia.

Ele mantinha o seu mundo secreto no seu quarto que ficava na área externa da casa e onde só ele tinha acesso. Era assim, morando com os pais, que sempre matinha a desculpa de que não queria trazer transtornos para o casal de idosos para deixar o seu espaço longe dos olhos curiosos, que vez por outra se ofereciam para conhecer a sua casa.

A sua primeira experiência com o vício foi aos sete anos, numa viagem que fez até a casa da sua tia avó no Interior do Estado. Era a sua primeira vez fora do seu lar. E um novo mundo e as suas novas necessidades se abriram.

Foi lá que pela primeira vez que viveu aquela sensação.

Era um domingo, 9 horas da manhã...

A TV estava desligada, o calor começava a se aproximar da casa, os móveis escuros de tão lustrados pareciam espelhos, os quartos estavam vazios. A única movimentação era na cozinha, onde estavam sendo preparados os quitutes especialmente produzidos para a chegada dele.

Ainda constrangido com o novo, respirou fundo... e sentiu o ar diferente.

Nunca havia sentido cheiros como aqueles... se sentiu paralisado...parecia que havia sido invadido por um transe completo.

E ao tomar consciência do seu estado fez uma coisa que ia viria a marcar o resto da sua vida: pegou o primeiro pote que viu, encheu de ar e lacrou.

E a partir deste momento tornou-se um viciado em cheiros.

De lá para cá não parou. Em todas as casas que ia, nas lojas por onde andava e, claro, nas perfumarias... sempre repetia o mesmo gesto: respirava fundo – como se fosse a última vez que pudesse ingerir oxigênio, soltava devagar... depois assim... escondido...remexia um pote para enchê-lo de ar e guardava.

Tinha uma coleção de potes no seu quarto. Na sua última contagem passavam dos mil. Com o passar dos anos foi aperfeiçoando a sua técnica. No lugar de grandes potes lacrados... começou a comprar pequenos tubos de ensaio para facilitar o manuseio e o armazenamento do ar.

Já era uma prerrogativa antes de sair de casa: a primeira coisa que fazia era guardar um ou mais tubinhos em um dos bolsos escondidos da calça.

Até que um dia tudo mudou. É que a nova faxineira achou por bem limpar o quarto do único herdeiro da casa. E pegou a chave reserva do quarto para dar uma "geral no local". Um pouco assustada com tamanha bagunça a faxineira passou mais de seis horas lavando, limpando, organizando. Viu que tinha uma série de potes guardados, alguns até com um pouco de poeira e fez questão de lavar. Limpou tudo.

Deixou o local um brilho.

Ao chegar em casa voltando do trabalho, tomou um susto: viu que os anos de trabalho de armazenamento de todos aqueles cheiros tinham acabado. Evaporou.

E mais uma vez ele entrou em transe.

Depois de alguns instantes... respirou aliviado. E sentiu o cheiro incrível da liberdade.

Jogou os potes fora. E de uma vez por todas se curou.