segunda-feira, outubro 14, 2002

Não sei por que acordei com uma vontade de ler quadrinhos. Me espantei quando encontrei essa entrevista de Quino, criador de Mafalda...

"Mafalda seria hoje mais pessimista"


Quino, o criador da menina "contestatária" e caprichosa, acredita cada vez menos em revoluções. Vinte e oito anos depois de deixar de desenhar a sua principal personagem, deixou-se obcecar por uma imagem em movimento

Quino anda há mês e meio com um desenho no bolso: um avião projectando-se contra o World Trade Center. É um rabisco tosco, feito a lápis na página de 11 de Setembro da sua agenda azul. "Estou obcecado", diz. Aos 69 anos, o criador de Mafalda deixou-se esmagar por uma imagem em movimento. Garante que, por muito cruel que fossem os seus desenhos, nunca se lembraria de pôr um avião cheio de gente a estatelar-se contra uma torre repleta de pessoas. Ainda acredita em revoluções, mas cada vez menos. Ainda anseia por liberdade, mas sente-se cada vez mais impotente. Cita muito Saramago. No essencial, está agradecido por não ter de desenhar Mafalda desde 1973, exceptuando em campanhas ocasionais da Cruz Vermelha e da Unicef. "Não saberia bem como começar", explicou à Focus.

Como veria Mafalda, "a contestatária", o actual conflito internacional?
Veria como eu o visse. Mas eu, para já, estou sobretudo desconcertado. Saí da Argentina a 8 de Setembro, três dias antes dos atentados, e deixei trabalho adiantado. Não sei o que sentirei quando me sentar com o papel à frente.

Umberto Eco, que o editou em Itália, diz que Mafalda não toma um partido: "só sabe que não está satisfeita". Hoje, ela continuaria sem saber que partido tomar?
Sim. Até aqui, as guerras tinham duas partes claras e uma pessoa escolhia um lado facilmente. Agora, não se pode estar ao lado de ninguém. Ao lado de Bush, não. De Blair, muito menos. Dos taliban, ainda menos. E um amigo italiano diz que, quando uma pessoa não está de um lado nem de outro da barricada, então essa pessoa é a barricada...

Essa indecisão prova que as preocupações que orientaram a criação de Mafalda, há quase 40 anos, continuam actuais?
Penso que sim. Mas há uma novidade: agora já não é preciso inventar nada. O ataque aos EUA, por exemplo, aconteceu exctamente nos moldes da arte americana: com as explosões, os incêndios, as catástrofes... É só copiar.

Hoje, a personagem Liberdade, a amiga pequenina de Mafalda, seria um pouco maior?
Depois do 11 de Setembro, seria ainda menor. Este controlo dos aeroportos, da vida das pessoas, vai acabar com a privacidade. Temos menos liberdade.

A edição italiana de um dos seus livros chamava-se Livro das Crianças Terríveis Para Adultos Masoquistas. Qual dos dois você é hoje?
Já fui os dois, mas agora não sou nenhum. Quando fiz a Mafalda, o Mundo era outro e eu tinha metade da idade de hoje. Hoje, tudo mudaria.

O que mudaria?
Hoje estou mais pessimista. Mafalda também seria mais pessimista.

As personagens de Mafalda são um tanto politicamente incorrectas: não gostam de sopa, não gostam da escola, adoram Brigitte Bardot... É importante que as crianças cultivem os seus caprichos?
Muito importante. Há que ensinar-lhes os limites, mas também deixá-las cometer erros.

Fica a ideia de que distribuiu as suas próprias manias por aquelas crianças. Quando pensa em Manelinho, o vizinho de Mafalda cujo materialismo você ridicularizava, lembra-se de todo o dinheiro que ganhou com a colecção?
Sim. E também é por isso que tenho o bom senso de gastar muitíssimo. Vivo em viagem contínua entre a Europa e a América do Sul, e, exceptuando desta vez em que paga a FNAC, sou eu que pago tudo.

Os ídolos das personagens de Mafalda são os Beatles, Brigitte Bardot... Conseguiria encontrar, no panorama actual, ícones com a mesma força para povoar o universo de novas personagens?
Não. Ninguém, até ao momento, trouxe a alegria que pos Beatles trouxeram à música. Quanto a Brigitte Bardot, e apesar de eu agora detestar as posições ideológicas dela, também ninguém personificou tão bem o papel da "namoradinha" francesa. Gosto da Émanuelle Béart, mas não é a mesma coisa. E a Juliette Binoche é só uma carinha de cosmética...

É por isso que Mafalda é feia? Porque você não gosta de carinhas de cosmética?
Talvez. Fazer uma menina bonita era demasiado fácil.

Mas a Susaninha, amiga de Mafalda, é uma menina bonita e casadoira. Ainda o seria hoje: uma menina bonita que só pensa em casar e ter filhos?
Sim. Nem sempre entendo que, com este Mundo perverso, tanta gente ainda queira ter filhos. Mas o Homem permanece.

Mudou-se de Buenos Aires para Milão em 1976, quando Rafael Videla chegou ao poder na Argentina. Não teria sido possível desenhar Mafalda durante a ditadura?
Não.

Talvez lhe pusessem apenas uma cinta Para Adultos, como Franco mandou fazer em Espanha...
No máximo, deixar-me-iam desenhar para provar que era possível fazê-lo na Argentina. Mas eu nunca poderia falar dos desaparecidos, e era impossível não falar disso.

Continua marxista?
Socialista. Creio que 70 anos de má experiência são insuficientes para dizer que o socialismo não faz sentido. Neste aspecto, penso o mesmo que José Saramago.

O texto pode ser lido na íntegra no site: http://www.joelneto.com/reportagens/mafalda.htm

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