Não sei por que acordei com uma vontade de ler quadrinhos. Me espantei quando encontrei essa entrevista de Quino, criador de Mafalda...
Quino, o criador da menina "contestatária" e caprichosa, acredita cada vez menos em revoluções. Vinte e oito anos depois de deixar de desenhar a sua principal personagem, deixou-se obcecar por uma imagem em movimento
Quino anda há mês e meio com um desenho no bolso: um avião projectando-se contra o World Trade Center. É um rabisco tosco, feito a lápis na página de 11 de Setembro da sua agenda azul. "Estou obcecado", diz. Aos 69 anos, o criador de Mafalda deixou-se esmagar por uma imagem em movimento. Garante que, por muito cruel que fossem os seus desenhos, nunca se lembraria de pôr um avião cheio de gente a estatelar-se contra uma torre repleta de pessoas. Ainda acredita em revoluções, mas cada vez menos. Ainda anseia por liberdade, mas sente-se cada vez mais impotente. Cita muito Saramago. No essencial, está agradecido por não ter de desenhar Mafalda desde 1973, exceptuando em campanhas ocasionais da Cruz Vermelha e da Unicef. "Não saberia bem como começar", explicou à Focus.
Como veria Mafalda, "a contestatária", o actual conflito internacional?
Veria como eu o visse. Mas eu, para já, estou sobretudo desconcertado. Saí da Argentina a 8 de Setembro, três dias antes dos atentados, e deixei trabalho adiantado. Não sei o que sentirei quando me sentar com o papel à frente.
Umberto Eco, que o editou em Itália, diz que Mafalda não toma um partido: "só sabe que não está satisfeita". Hoje, ela continuaria sem saber que partido tomar?
Sim. Até aqui, as guerras tinham duas partes claras e uma pessoa escolhia um lado facilmente. Agora, não se pode estar ao lado de ninguém. Ao lado de Bush, não. De Blair, muito menos. Dos taliban, ainda menos. E um amigo italiano diz que, quando uma pessoa não está de um lado nem de outro da barricada, então essa pessoa é a barricada...
Essa indecisão prova que as preocupações que orientaram a criação de Mafalda, há quase 40 anos, continuam actuais?
Penso que sim. Mas há uma novidade: agora já não é preciso inventar nada. O ataque aos EUA, por exemplo, aconteceu exctamente nos moldes da arte americana: com as explosões, os incêndios, as catástrofes... É só copiar.
Hoje, a personagem Liberdade, a amiga pequenina de Mafalda, seria um pouco maior?
Depois do 11 de Setembro, seria ainda menor. Este controlo dos aeroportos, da vida das pessoas, vai acabar com a privacidade. Temos menos liberdade.
A edição italiana de um dos seus livros chamava-se Livro das Crianças Terríveis Para Adultos Masoquistas. Qual dos dois você é hoje?
Já fui os dois, mas agora não sou nenhum. Quando fiz a Mafalda, o Mundo era outro e eu tinha metade da idade de hoje. Hoje, tudo mudaria.
O que mudaria?
Hoje estou mais pessimista. Mafalda também seria mais pessimista.
As personagens de Mafalda são um tanto politicamente incorrectas: não gostam de sopa, não gostam da escola, adoram Brigitte Bardot... É importante que as crianças cultivem os seus caprichos?
Muito importante. Há que ensinar-lhes os limites, mas também deixá-las cometer erros.
Fica a ideia de que distribuiu as suas próprias manias por aquelas crianças. Quando pensa em Manelinho, o vizinho de Mafalda cujo materialismo você ridicularizava, lembra-se de todo o dinheiro que ganhou com a colecção?
Sim. E também é por isso que tenho o bom senso de gastar muitíssimo. Vivo em viagem contínua entre a Europa e a América do Sul, e, exceptuando desta vez em que paga a FNAC, sou eu que pago tudo.
Os ídolos das personagens de Mafalda são os Beatles, Brigitte Bardot... Conseguiria encontrar, no panorama actual, ícones com a mesma força para povoar o universo de novas personagens?
Não. Ninguém, até ao momento, trouxe a alegria que pos Beatles trouxeram à música. Quanto a Brigitte Bardot, e apesar de eu agora detestar as posições ideológicas dela, também ninguém personificou tão bem o papel da "namoradinha" francesa. Gosto da Émanuelle Béart, mas não é a mesma coisa. E a Juliette Binoche é só uma carinha de cosmética...
É por isso que Mafalda é feia? Porque você não gosta de carinhas de cosmética?
Talvez. Fazer uma menina bonita era demasiado fácil.
Mas a Susaninha, amiga de Mafalda, é uma menina bonita e casadoira. Ainda o seria hoje: uma menina bonita que só pensa em casar e ter filhos?
Sim. Nem sempre entendo que, com este Mundo perverso, tanta gente ainda queira ter filhos. Mas o Homem permanece.
Mudou-se de Buenos Aires para Milão em 1976, quando Rafael Videla chegou ao poder na Argentina. Não teria sido possível desenhar Mafalda durante a ditadura?
Não.
Talvez lhe pusessem apenas uma cinta Para Adultos, como Franco mandou fazer em Espanha...
No máximo, deixar-me-iam desenhar para provar que era possível fazê-lo na Argentina. Mas eu nunca poderia falar dos desaparecidos, e era impossível não falar disso.
Continua marxista?
Socialista. Creio que 70 anos de má experiência são insuficientes para dizer que o socialismo não faz sentido. Neste aspecto, penso o mesmo que José Saramago.
O texto pode ser lido na íntegra no site: http://www.joelneto.com/reportagens/mafalda.htm

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