Jornalistas gostam de guerra
Londres, 1995. O plano era ficar dois ou três anos na Europa: Reino Unido, Espanha, França e Itália. Aprender línguas. Trabalhar. Viver uma rotina alienígena. Os frilas minguavam: TV Bandeirantes, Revista Byte Brasil, Revista Saúde, A Gazeta Esportiva. O dinheiro e a experiência mal projetada estavam chegando ao fim. Éramos eu e a Vivian, minha primeira mulher, psicóloga junguiana. Frustrados e ressentidos um com o outro. Previ uma coisa e aconteceu outra que, sabíamos, muito cedo nos traria de volta para o Brasil - após pouco mais de três meses na Inglaterra. O que explicar aos familiares e amigos? Não conseguimos? Fomos vencidos? Ora, sempre pensei assim: que se danem os que não têm capacidade de compreender o vaivém do mundo, que se danem os abutres da intolerância. Mas que doía, doía.
Tive, então, uma idéia. Sugeri que olhássemos para outra cara feia, que não fosse a de alguns “amigos” mais exigentes. Não voltaríamos tão rápido para o Brasil. Não. Iríamos para a guerra. Havia um conflito lá perto, nos Bálcans. E como faríamos isso?
Peguei o telefone e liguei para um alto executivo da Rede Bandeirantes, meu amigo há vários anos. “Você quer o correspondente de guerra mais barato da história do jornalismo?”, perguntei. Expliquei-lhe que só precisaria do mínimo para sobreviver em Sarajevo, a capital da Bósnia-Hezergovina. Comida, dinheiro do hotel...
"Dinheiro do hotel?", reagiu. “Na guerra, hotel se paga com bala”, dramatizou. Mas gostou da idéia e levou-a adiante ao chefe de jornalismo da emissora. Alguns dias depois, veio a resposta: não. A Bandeirantes estava se virando bem com o material das agências internacionais. Achei estranho, mas...
Havia uma segunda opção: iríamos como voluntários das Nações Unidas. Não nos importava, à essa altura, o que faríamos na guerra. Desde que fôssemos para a guerra. Resposta: não. A ONU tinha o seu quadro de voluntários cadastrados ao longo dos anos. Não estava precisando de nós dois.
Terceira e última chance: a Cruz Vermelha. Resposta: não. A situação, de fato, era muito mais complexa do que chegar lá no escritório e dizer “quero ajudar na guerra”...
Nosso estado de espírito era o pior possível. Ainda assim, virei para a Vivian e concluí: “Estamos mesmo por baixo... Não querem a gente na guerra nem para trabalhar de graça...” Rimos muito, com o coração opresso. Voltamos para o Brasil.
Esse episódio me permitiu chegar a algumas conclusões. Lembro-me bem de minha reação ao ler um jornal britânico que predizia o fim da guerra em menos de um mês. O primeiro sentimento, que repudio – embora o compreenda como natural e grotescamente humano - foi o de torcer para que os combates se alongassem um pouco mais. O suficiente para que eu fosse para lá e enviasse alguns informes para São Paulo. “P..., logo eu, admirador de John Lennon, de Gandhi, de...” A contradição era facilmente explicável: é o egoísmo, o mesmo que transforma “combatentes da liberdade”, “libertadores dos povos” em tiranos e em demagogos eivados de oportunismo. Claro, cada qual com os seus limites, nunca admirei os Saddams, os Bushs, os Castros... Nem pretendo ser ditador um dia. Mas havia ali uma mácula. Não, não queria pensar nas mortes, na barbárie extra do prorrogar do conflito. Não. Queria ser correspondente de guerra. Nem que para isso eu jogasse fora, por um mês que fosse, todo o meu ideário anti-belicista.
Por quê? Algumas conclusões, que servem para mim e podem servir para qualquer outro profissional:
1) Gosto de emoções fortes;
2) A cobertura de guerra é considerada por muitos o supra-sumo, o néctar, a fina-flor do jornalismo;
3) É uma experiência cara para o entendimento do mundo e, principalmente, do ser-humano (para um escritor, é importante, Hemingway – claro, claro, ele era meio maluco-sabia bem disso);
4) A guerra nos põe à prova. Imaginamos como reagiríamos durante um ataque; ou se fôssemos ameaçados; ou se fôssemos feridos. Ao fim e ao cabo: viveríamos ou morreríamos?
5) A morte está sempre próxima. É um teste para a nossa fibra. É um riso de escárnio na cara da rotina, na cara do perigo, na cara da própria morte;
6) É uma oportunidade rara de estar no epicentro de acontecimentos que vão mudar para sempre o destino do mundo. É essencialmente jornalístico. É histórico;
7) É um teste profissional sem paralelo. Seremos eficazes em meio ao apocalipse? Conseguiremos trabalhar? Seremos, enfim, jornalistas?
Paro por aqui, não vou escrever um decálogo – tão em voga, nestes tempos, para definir o óbvio.
Hoje, por razões que muitos podem compreender, sou contra a invasão do Iraque. Sabemos, contudo, que Bush&Blair – parece ou não marca de secador de cabelo presidencial? - não vão parar até a conclusão inexorável de seus intentos. Penso que, quanto mais trabalho os iraquianos derem, mais difícil será a vida política dos dois dirigentes - no próprio quintal e perante o direito internacional - por mais precária e hipócrita que seja a ordem que se engendrou no período pós-Segunda Guerra e, mais para cá, neste dias pós - Guerra Fria - sob a chancela de um suposto “concerto das nações” orquestrado pela ONU.
Em tese, sou contra a guerra. Mas os americanos e britânicos, a meu ver, devem sofrer as conseqüências do unilateralismo (uma palavra eufemística que define o modus operandi do imperialismo). Senão o mundo desanda de vez. É um paradoxo, sim.
Falemos de jornalismo: parece-me óbvio que a guerra é boa para todos os veículos que nos “bombardeiam” com as notícias quentes, com cheiro de sangue, de absurdo e de ameaça mundial- três componentes que vendem jornal e revista, frutificam nas agências e vitaminam a audiência dos sites e das emissoras de rádio e de televisão. Ou não?
Por fim, não quero me tomar como modelo público de cinismo, não foi isso que meus pais me ensinaram, lá na infância. Antes, busco a honestidade. Há muitas encruzilhadas no caminho. E algumas escolhas podem sacudir as nossas, digamos, rígidas e “bem-fundamentadinhas” convicções de outrora. A pergunta persiste: nossas boas intenções serão mesmo suficientes? O que é melhor? Ser correspondente de guerra ou torcer contra todas as guerras? Estaremos mesmo preparados para a paz? A paz dá audiência? Reflitamos, antes de dormir.
Fonte:www.comunique-se.com.br