Atire no jornalista
Tenho uma má notícia para você. O assassinato dos três colegas mortos por um obus saído de um tanque das forças anglo-americanas que invadiram o Iraque quando trabalhavam dentro do Hotel Palestine, em Bagdá, não foi obra do acaso. O triplo homicídio faz parte de uma linha sobre a qual estão também a prisão e expulsão de jornalistas por autoridades do deposto regime iraquiano, o bombardeio das sedes da TV Al-Jazeera em Cabul e agora em Bagdá e a prisão do escritor e jornalista Raúl Rivero em Cuba.
"Que linha é essa que une acontecimentos tão distantes?", perguntará você. Para responder à questão, necessitamos um pouco de teoria (desculpe, mas algumas vezes é inevitável).
Na verdade, não é muito complicado. Se você estava prestando atenção às aulas de Geografia no Ensino Médio (antigo 2º Grau), sabe que, pela maior parte da história da Humanidade, a Agricultura, o setor primário, foi a geradora de riqueza e valor nas sociedades. De uns 400 anos para cá, este tipo de geração de riqueza foi sendo substituída - primeiro aos poucos, depois em ritmo alucinante - pela indústria (setor secundário). A mudança de uma para outra foi chamada de modernização e deu nome à chamada Era Moderna. A modernização atingiu todos os pontos da vida econômica (a própria agricultura foi industrializada), chegando até ao imaginário e à linguagem (você nunca notou como usamos à beça a metáfora de "máquina", mesmo em relação ao corpo humano, que de mecânico não tem nada?).
Nos últimos 35, 40 anos, temos passado por uma outra alteração fundamental no sistema capitalista. Este tem saído aos poucos do período industrial para um que tem sido chamado de pós-industrial ou informacional (Manuel Castells), no qual a própria transformação de matéria-prima em produto, característica da indústria, tem ficado sob o comando da informática. Um exemplo: o sonho dourado da indústria de automóveis é criar um carro que possua a "cara" de seu dono. Para isso, este tem que passar as informações sobre o que deseja em termos de automóvel para que este seja fabricado o mais próximo possível de acordo com seus desejos. Ou seja, é a informação que sai do consumidor que formata o produto, uma inversão daquele conceito de Henry Ford: "Todos têm ampla liberdade de escolher qualquer cor para seus carros, desde que seja preto".
O uso da informática - seja sob a forma robotização, seja por possibilitar a fabricação de produtos em diversas partes do mundo (carros com chassis feitos no México, faróis na Turquia, câmbios na Malásia e montados no Brasil) - alterou profundamente a distribuição dos postos de trabalho nas últimas décadas, fazendo com que numerosa parcela da mão-de-obra migrasse para o setor de serviços, o terciário. Hoje, este setor emprega a maior parte da mão de obra nos países centrais e mesmo naqueles que estejam na segunda divisão da economia mundial (o Brasil, por exemplo). E é no setor terciário que a nova forma da sociedade informacional tem suas melhores condições de desenvolvimento por ser nele que a informação e o conhecimento se transformam em mercadoria de alto valor.
E por que o setor de serviços é tão valioso? Porque é nele que se encontra a indústria que produz sentido, significados, as palavras (e imagens) para as coisas. Num mundo em que você não tem mais o conforto do tempo para aprender, com calma, conceitos passados por seus pais, seus avós, os vizinhos e os professores, quem tem capacidade de influir na produção, venda e fixação de conceitos, de pensamentos, é alguém (ou algo) muito poderoso. Pode influir, na medida de seu poder, nas decisões econômicas e políticas de alcance mundial.
Ora, quem manipula palavras e imagens então é o produtor de uma mercadoria que numa sociedade em que a informação e o conhecimento são muito valiosos. Assim, como ainda hoje é importante, numa guerra, atingir as fábricas de produtos essenciais do inimigo (petróleo e derivados, aviação, construção civil, etc), também se tornou vital destruir as "fábricas" de conceitos e pensamentos. Por isso bombardeios de estações de TV se tornaram comuns. "Mas se precisa assassinar jornalistas a sangue frio?", perguntará você, talvez algo horrorizado.
Bem, temo que sim. Nada pessoal, é claro. É que a miniaturização das ferramentas da indústria do significado, proporcionada pela informática, e a sua operação em rede (característica essencial da qual pretendo falar numa próxima coluna), diferente do sistema "junta-todo-mundo-numa-fábrica", permite que uma pessoa - ou um pequeníssimo número de pessoas - possa "fabricar" o "produto" - a informação -, tornando-se assim uma espécie de planta fabril ambulante que precisa ser posta fora de combate, seja expulsando do local onde se encontra a "matéria-prima", prendendo, censurando na cama ("embeded") ou, quando não der pra fazer nada disso, destruindo fisicamente mesmo.
Diante deste quadro, os jornalistas que cobrem guerras e trabalham com jornalismo investigativo (mas não só esses, pois manipulação também vale como ataque na indústria de significados) devem botar as barbas de molho (mesmo as moças, que não as têm), pois o que antes era um "efeito colateral" no nível de deixar criancinhas sem os dois braços, tornou-se objetivo primordial. As "balas perdidas" (ou "obuses perdidos") tendem a cada vez mais "achar" jornalistas.
Fonte: www.comunique-se.com.br

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