sexta-feira, janeiro 17, 2003

Nós, os escravos das notícias ordinárias
José Paulo Lanyi


Toda virada de ano me vem o tal pensamento: para os otimistas, mais um ano vivido; para os pessimistas, menos um, na contagem regressiva que nos conduz ao fim da linha.

Flerto com a segunda assertiva. Melancólica, é verdade, mas inspiradora de uma interpretação tranqüila e nem por isso menos realista dos fatos que vivemos dia após dia.

Trata-se de um exercício honesto de observação. Pois, o que quer que idealizemos, nada será capaz de nos privilegiar: seremos, sim, testemunhas da inexorabilidade de um papel há muito definido pela engrenagem da natureza. Assim foi, assim é e assim será. Poderemos clonar corpos, jamais a consciência imanente a cada um de nós. Temos, portanto, a certeza da finidade da experiência histórica do indivíduo – histórica, repito, já excluindo do debate as considerações metafísicas, tema caro mas estrangeiro à proposta deste artigo.

Estender o olhar para longe do cotidiano é um privilégio. Torna tudo mais aceitável. Não se trata de uma fuga, mas de saber pesar as experiências, sem roubar para mais ou para menos. Por vezes, o que julgamos inaceitável não é mais do que um arbítrio de nossos caprichos.

O apego ao “tecnicamente correto”, expressado por um “então” chefe de redação, muitas vezes nada mais é do que... o apego ao “tecnicamente correto” do “então” chefe de redação largamente influenciado pelo contexto histórico, sócio-econômico e cultural. Um falso líder que carece de formação filosófica que lhe propicie essa visão que os antropólogos classificam de “estranhamento”. A conseqüência é paupérrima: fazem-se seres práticos com objetivos a cumprir. E nada mais.

É uma falta que contamina o grupo com conceitos definitivos, com “corolários” jornalísticos tão a gosto dos personalistas sabe-tudo. Desse saco de preceitos saem as recompensas e as punições. Autômatos julgam autômatos, com um chicote metálico nas mãos. Os que estão embaixo na pirâmide contentam-se em construir outras pirâmides – dentro e fora das redações. Propalam-se conceitos como “reengenharia”, “eficiência e eficácia”, “amoralidade do lucro”, “rabo preso com o leitor”, “respeito absoluto aos manuais”, “ética” (mas só para os outros), “tolerância zero” com os erros (dos outros)...

Tome-se esta frase extraída do livro “Hiroshima”, de John Hersey (Companhia das Letras, p. 122). O trecho versa sobre os hábitos do padre Wilhelm Kleinsorge, jesuíta alemão que se tornou cidadão japonês com o nome de Makoto Takakura (Kleinsorge era um hibakusha, um sobrevivente da bomba atômica lançada pelos americanos em Hiroshima): “O padre Hasegawa, um japonês que o visitava de quando em quando, admirava seus esforços para levar sua naturalização à perfeição, mas sob muitos aspectos o achava inabalavelmente alemão. Se algum obstáculo o impedia de alcançar seu objetivo, o padre Takakura tendia a insistir com maior empenho, enquanto um japonês tentaria, mais diplomaticamente, encontrar outro caminho”.

Parece que temos muitos “alemães” nas redações brasileiras. Almas obstinadas pela tradição e pela “nova tradição”, à retaguarda de suas viseiras douradas. Vêem apenas o que “o leitor”, “o ouvinte”, “o telespectador” precisam ver – interprete-se: o que o “mercado” deseja (mais, mais, cada vez mais e mais...).

Para além da história e do cotidiano, todos nós, jornalistas ou não, deveríamos tentar enxergar o infinito. Mais do que nos vaporizar pelo abstrato, entenderíamos melhor o hodierno.

Em uma viagem para o exterior, vi-me nutrido, num punhado de meses, de uma estranha sensação: eu poderia não ter nascido, não ter nem sequer conhecido o Brasil. Esse sentimento, revalidado a cada dia na distância de minha cultura natal, esvaziou a importância de muitos de meus embates de início de carreira (contra pessoas que, covardemente, tentaram me barrar os passos). Não que eu passasse a desprezar o resultado das altercações – traduzidas em experiência e – como bem diz o Nietzsche - na afirmação da minha vontade de potência – amparada pelo que eu julgava correto naquele momento histórico. Mas algo me chamou a atenção: a distância e a relativização do binômio tempo-espaço fizeram definhar, em minha consciência, a relevância dos “ditadores” do status, de certos diretores que se supunham – e ainda se supõem - a fina-flor do jornalismo mundial, no jardinzinho regado por capatazes sôfregos. No entanto, em meu insight, era como se nunca houvessem existido.

Precisamos refletir...

Uma sugestão – para quem não tem tempo nem dinheiro para uma pausa em nossa cultura de reprodução vazia: o livro “O Mundo Assombrado pelos Demônios - A Ciência Vista Como uma Vela no Escuro” (Companhia das Letras), do cientista Carl Sagan, autor, diretor e apresentador da série “Cosmos” – disponível em boas locadoras de vídeo. Os escritos e as produções audiovisuais de Sagan – um “cético esperançoso”, um cientista de “mente aberta” nos conduzem, didaticamente, a uma viagem crítica pelo universo – nem o jornalismo escapa, acusado de incentivar, veicular e lucrar com as superstições.

Precisamos de ciência e de filosofia...

Em sua primeira edição de 2003, o site Observatório da Imprensa publicou um excelente artigo de Ulisses Capozzoli, presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Científico (ABJC) e editor da revista Scientific American Brasil. Sob o título “O sentido de estarmos aqui”, o autor nos convida a “recuperar alguns valores da vida”. Dois trechos capitais:

a) “Uma das funções do jornalismo, ao menos do jornalismo impresso, certamente é a de discutir o que o professor João Battistioli, da PUC-SP, chamou outro dia, num debate sobre clonagem transmitido pela TV Assembléia, de ‘niilismo profundo’, evocando reflexões de Nietzche e Schopenhauer. Do interior do niilismo, o mundo não faz sentido.

Mas as redações são, na maioria dos casos, elas próprias espaços de negação. Jornalistas, talvez mais que outro tipo de gente, são prisioneiros do universo cartesiano. Trabalha-se em fins de semana, dias santos e outros feriados. Diariamente, a cada final de semana, todo fim de mês, dependendo da publicação, é preciso fechar uma edição. Não sobra tempo para reflexão”.

b) “Também as estrelas nascem, vivem e morrem. Se um observador não levar em conta nada disso, certamente terá perdido a melhor parte da experiência de estarmos aqui. Daí a vantagem deste balanço de fim de ano e a perspectiva de se vivenciar o que os gregos antigos chamaram de ‘cosmos’, o sentimento de harmonia, de pertencer ao Universo e não apenas o sentimento de derrota por não ser um super-homem ou uma supermulher. Até porque, para cada um deles, também há uma porção de kriptonita”.

Já disse que precisamos de reflexão, de ciência e de filosofia. A combinação que nos apresentará a humildade, em nossas atitudes e, também, no reconhecimento de que estamos subjugados pela roda-viva de uma mesmice presunçosa, pela escravidão de um modelo de “profissionalismo” asfixiante e por um arcabouço noticioso engessado e comprometido com a intrigante monotonia de nossa era: muito se faz e muito se diz sobre muitas coisas; pouco se pensa sobre como tudo isso pode ser descartável - apesar da pose de “importante”, da fachada onde se lêem palavras como “imprescindível”, “competente” e “superior”.

Resumindo: como diria meu avô húngaro, quanta ilusão...

Fonte: www.comunique-se.com.br

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